domingo, 21 de novembro de 2021

Caso: O resgate da família canina

 

(Delicadezas em tempos de Coronavírus - LXIII)

 



Dona Marta atendeu rapidamente ao chamado da vizinha, de pé, no meio da rua-caminho. Perto de suas casas. A vizinha estava inquieta. Apontou a causa de seu apavoramento: um filhote da ninhada da cachorra alojada defronte a casa do outro vizinho. Muito emagrecido, estirado sob a terra, com as costelinhas visíveis e cheiro fétido exalando das feridas pelo corpo. Larvas o comiam ainda vivo. Deu seu último suspiro durante a chegada de Dona Marta. Alice, agora preocupada com o corpinho no meio da estradada, tratou logo de enterrar o bichinho. Mostrou a situação em que se encontravam os demais filhotes da cadela sem dono. “Um morreu atropelado pelo vizinho” informou ela contrariada.

Dona Marta nem quis olhar. Sabia que seu coração não suportaria ver tal cena apontada. Ela, que já adotara alguns cães abandonados, sabia do trabalho dispensado, dos gastos e, agora um pouco adoentada, não poderia cuidar de mais uma ninhada. Entretanto, na manhã seguinte, vieram lhe contar do estado de penúria em que se encontravam os quatro sobreviventes. Dormindo no tempo, ora debaixo do sol, ora debaixo da chuva. A mãe não tinha leite - não comera durante a gestação - e parecia desesperada querendo salvar seus filhotes.

Aceitou cuidar do mais fraquinho. Pediu a visita do veterinário cujo trabalho dona Marta tanto admirava. À tarde, quando voltou do seu trabalho, lá estava o quarteto. Esfomeados, fedorentos, caquéticos, desidratados e desnutridos. O mau cheiro circundava toda a casa.

A noite o veterinário - será que ele é japonês ou chinês? - voltando do consultório, passou por lá para atende-los. Todos eles com bichos de pés, feridas abertas e muitas larvas das danadas varejeiras. O médico, calmamente, 
pegou um por um, tirou todas as larvas, amputou dedos necrosados, limpou as feridas, orientou os tratamentos e deixou as receitas.

Alice, Ana e Nelinho apoiaram a decisão e prometeram contribuir para a recuperação dos bichinhos. Cada um a seu modo e a seu tempo. E, nesta empreitada, ninguém observou quem era macho ou quem era fêmea. A preocupação naquela hora era apenas salvá-los.

Já com viagem programada, afinal era o aniversário do netinho, Dona Marta deixou a ninhada aos cuidados dos prestimosos vizinhos. Pegou o carro e ganhou a estrada. E foi duplamente viajando naquela manhã que seu coração tanto disparou. Lembrou das famílias Severinas, no nordeste brasileiro, que durante tantas décadas morriam de fome, de desidratação, de verminoses, de seca. Certamente ainda hoje, nos rincões das terras rachadas, meninas são trocadas por “algum ganhume” para o resto da família não morrer na miséria. Engasgou detrás do volante ao lembrar do tempo que esteve lá, na década de oitenta, enquanto estudante de medicina. Percorreu vários casebres. Viu vários olhos sem vida. Viu peles ressequidas. Viu meninas grávidas após menstruarem pela primeira vez. Não entendia os convites dos fazendeiros para as festas regadas a bebidas importadas em verdadeiros oásis de flores, frutas e comidas fartas. Cabulou e sofreu muito naquele trabalho e ainda hoje nas lembranças. Constatar as diferenças sociais feriram seus olhos e seu coração. Voltou dividida. Estraçalhada.

Agora a fome volta a assolar o povo brasileiro. O desemprego crescendo por todo o país. Os mais ricos ficando mais ricos. Os mais pobres ficando mais pobres. Uma economia excludente, voltada para o capital. “Que morram os pobres. Eles gastam dinheiro público. Precisam de cuidados assistenciais. Precisam de assistência em saúde." Assim tem-se traduzido as vozes deste governo incompetente e amoral, pensou Dona Marta.

E ela volta dos seus devaneios. Chegou na cidade do seu filho. Num grande sorriso encontra o netinho. “Vovó bufufuda!” E muitos abraços e brincadeiras.

Quando retornou para sua casa, encontrou a mãe cachorra já cuidando e tentando amamentar seus desvalidos. “Não tem outro nome para ela senão Severina” - pensou Dona Marta. Maria e José foram os nomes escolhidos para os mais fraquinhos. Aqueles que tiveram dedos amputados. Dona Marta e Alice deram soro aos dois. Tentou alimentá-los com rações deliciosas. Mas Maria faleceu no segundo dia dos cuidados. Deu seu último suspiro no colo de Dona Marta que ficou com os pensamentos cá e lá.

(Deixou, há muito tempo, de assistir jornais. As fatalidades televisivas ela vem se recusando a ver. Cuida das partes que lhe cabem.)

Descobriu que o filhote, José, é uma fêmea. Ela sobrevive com metade de uma patinha e até arrisca brincar com Paçoca pela grade do canil. Tica agora é seu nome. Ainda desnutrida, mas já dando seus passeios furtivos pelo quintal. Teca e Tico são os mais saudáveis. Ela cor de caramelo da mãe. Ele cor preta, do pai? Teca é atrevida. Não tem medo da terrível Tieta. Teco fica na dele. Faz conhecimento do quintal e dos seus perigos. O velho Neguinho só fica observando como se fosse Tipu, o grande sultão indiano. E todos já se entendem.

Agora é aguardar o fim dos tratamentos e encontrar quem os queira. Lembrando que eles têm uma história de sobrevivência contada e recontada e publicada.

21/11/2021
Funil/ Mário Campos

5 comentários:

  1. É D. Zarinha: com um pouco de cuidado e atenção tudo se resolve e a vida segue seu curso.
    Você está escrevendo cada vez melhor
    Tenho orgulho de ser seu amigo.

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  2. Parabéns, amamos a história👏👏👏👏

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  3. Dona Marta é protetora dos menos favorecidos, e isto inclui os cães SRD - Sem Raça Definida.

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  4. Choramos e sorrimos com a história!!! Como sempre suas histórias mexem com os nossos sentimentos!!

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