segunda-feira, 5 de maio de 2014

Vozes de Marias

Era manhã do dia sete de setembro, data em que o Brasil celebra sua liberdade. De repente escutei uma música que não era o hino da independência. Uma música cantada ao vento, saída da alma, melodiosa e em altos brados retumbantes... Também não era o Hino Nacional. Atentei serem louvores bíblicos. O som enchia todos os espaços no entorno. Busquei, em vão, localizar aquele canto. Na verdade, queria mesmo era localizar o cantador. Tarefa sem sucesso. O som se espalhava por toda parte, reverberava por todos os lados.


Era hora de iniciar meu trabalho. Então caminhei com a música nos ares e, no comprido corredor, eis que a dona da voz e do canto apareceu. Era a já conhecida, Maria Holanda. Encontrava-se desvairada, desajuizada, longos cabelos não chapados, divididos ao meio e não querendo cair nos ombros. Caminhei em direção à mesma e passei ao lado. Dei-lhe “um bom dia” e a dona da voz olhou-me com descaso. Estava esplendorosa no seu canto.  

Continuou cantando indiferente aos passantes... Ela não estava ali. Ali seu corpo insistia em ficar apenas para abrigar sua voz.

As horas passavam.

Segui no meu trabalho e o canto continuava...

À tarde fui chamada para avaliar uma paciente num leito próximo ao de Maria Holanda que, nesta hora, se encontrava ainda mais desinquieta, revirando papéis e se jogando sobre mesas, computadores e papeletas. Aos abraços de uma contenção física resistiu com toda sua força que, até então, só estava a serviço da voz. Fez-se necessário protegê-la.  Naquele momento poderia se ferir e ferir outras pacientes também carentes de cuidados.  

Se seu corpo fora aprisionado, sua voz ganhara a liberdade naquele dia da independência, e Maria Holanda cantarolou: “Eu sou um beija-flor”. Fez belíssimos e variados arranjos sonoros com seu único verso... “Eu sou um beija-flor”.

Após alçar voo, Maria Holanda, reiniciou seu canto numa súplica de dor “Maria, minha mãe, venha me salvar”.

Seu pedido e sua voz, agora, fizeram uma viagem pelo tempo e pelos espaços, até uma época em que mãe e filha, certamente, se salvaram. Naquela hora todos os sentimentos foram postos em tons.

Em alguns momentos parei meus afazeres e viajei com Maria Holanda através de sua história contada em canto.

Num leito próximo havia outra mulher. Essa internada desde que não se tem notícias, esquecida e abandonada pelos seus familiares e pelos outros. Era Maria Arioneuza num português clássico e enlouquecido, com palavras bem ditas e pontuais. Falava, falava e falava sem parar e sem repetir uma só palavra daquilo que falava. Mas tudo era falado numa única nota musical. Como uma reza ou uma ladainha, sem fim... Lá estava Maria Arioneuza... Monocórdica.

Nesta noite contaram-me que Maria Arioneuza era "pervertida e muito danada". Do alto de seu leito hospitalar, fisicamente restrito a ele, muito sabiamente imperava nos seus desmandos. Uma vez, aproveitando as mãos ocupadas da técnica que lhe dava alimentação, cascou-lhe um bofetão no rosto. A servidora, com muita calma, mas também com muita decisão, lhe avisou que, se fizesse aquilo outra vez, não daria a outra face, mas responderia da mesma forma. Maria Arioneuza prontamente respondeu: “E precisa ser tão agressiva!?” Deixando a outra entre cuidados e risos.

E lá estava eu entre as duas...

Por volta das três horas da madrugada Maria Holanda acordou num choro desesperador. Gritava enlouquecida. Logo a seguir começou a cantar de forma a se fazer ouvida por quase todo o gigantesco hospital: “Me ajuda meu pai... me perdoa meu pai... eu não quero enterro, meu pai... só quero sua luz divina...”  Repetia os versos numa súplica cheia de dor.

Obviamente acordou a todos, inclusive Maria Arioneuza  que, ali ao lado, começou sua ladainha de impropérios: “cala a boca diaba... Vá cantar no inferno demônia!”

Uma era o eco da outra... Invertido. Era só de escutar. 

Seria um anjo e seu avesso? Imaginei sorrindo... Mas, decididamente não queria saber...

Só sabia que ficaria ali, horas a fio, apenas ouvindo o cantar e o rezar...

E que me desculpe a psiquiatria, mas naquelas vozes e seus cantos  havia muito  mais do que meros fenômenos psicopatológicos, constatei.

Mas a lua já estava indo embora e o sol nasceria dali a pouco.

Terminei meu  plantão de vinte e quatro horas em urgência psiquiátrica naquele grande hospital público em Belo Horizonte.

E fui embora ainda ouvindo as vozes das Marias, incluindo a minha voz. Essa também dentro da minha cabeça.


08/09/2013
                           

7 comentários:

  1. Muito, muito legal! Acho que até agora é o meu predileto.
    Aguardo pelo próximo.

    Beijão!

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  2. Você consegue transformar a dor em letra e poesia!

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  3. Um dom maravilhoso q tem a nos presentear! Obrigada��

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  4. que lindo!! Parabéns e que sorte o SUS ter trabalhadoras tão sensíveis em uma área tão necessitada de outros olhares

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  5. Muito bom, irmã! Este eu ainda não conhecia! E que as vozes das Marias, inclusive a minha, continue a ecoar sempre, louvando ou não!

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  6. Maravilhoso este conto.

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  7. Como sempre brilhante em seus textos! Essas vozes vão me acompanhar ao longo do dia e fico perguntando como é complexo o ser humano: luzes e sombras, oração e blasfêmia. Aí veio o questionamento: a blasfêmia, o xingamento, etc. não seria uma oração de pedido de socorro no seu último grau de desesperança?

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