quarta-feira, 18 de março de 2020

DELICADEZAS NO ENTREMEIO DO CORONAVÍRUS II

 -Alô vó...


 - É esse tal de telefone sem fio que não me deixa em paz. Agora não posso fazer mais nada. É só prosear com meu povo. 

Vem lá Dona Mariinha, toda atrapalhada, equilibrando o aparelhinho nas mãos.

-Sim Jéssica, eu entendi. Ficar que nem galinha choca: só no meu ninho. Eu já tô até descorando viu minha neta. Aqui na roça tá todo mundo falando desse bichinho que ninguém vê, mas que tá fazendo um estrago danado.

- Tô tomando minhas providências. As filhas da Dona Rosa até se ofereceram para trazerem meus remédios do Posto de Saúde. Até vão no armazém do Sô Inácio comprar umas farturas pra mim.

-Oh minha neta, vô te dizer umas coisas dos meus tempos quando a gente nem sabia o que era esse tal de álcool gel. Até agora eu acho que são aqueles docinhos de gelatina com cachaça. Que gostosura e que cheiro bom e a gente ria sem parar depois que empaturrava com eles.

- Jéssica minha neta! Pois fique tranquila viu? Vou aproveitar e lavar as roupas todo dia. Fala pra sua mãe não se agastar. Eu tô bem.

Dona Mariinha desligou seu aparelhinho sem fio e saiu resmungando e falando com as galinhas e com os cachorros:

- Agora veja só! Os moços do rádio não param de falar deste tal de Coronavirus.

Na minha época o que matava eram as cascavéis, as urutus, os gaviões que não deixavam os pintinhos vingarem.

Agora vem dos estrangeiros um bicho tão pequeno que ninguém nem vê e vai pegando todo mundo e nem tem remédio que dê jeito nele.

Eu fico pensando é nos meus filhos nas cidades. Uns encostando nos outros dentro do trem debaixo da terra quando vão e voltam do trabalho. Rezo o terço pra eles toda noite.

Quando um fio meu tinha perebas nos braços e nas pernas eu passava a tal água de alibur que eu gostava de brincar e falava com eles que era água de urubu para espantar a doençada.

Se era nos olhos eu molhava um pedaço de pano limpinho com água boricada e gotejava dentro deles.

Agora essas meninas de hoje falam numa tal de água micelar que é pra limpar as peles. Eu cá que não passo nada na minha cara. Só lavo com água da bica.

Mas eu tô lembrando é que outro dia meu filho me convidou para ir na praia com ele e a mulher dele e meu neto. Eu cai na besteira e fui. Mas tava tão quente aquela excomungada da areia que eu fiquei só matutando nas minhas ideias. Como é que todo mundo fica ali tostando no sol sem fazer nada?

E depois ainda me contaram que tinha uma tal de água viva que tava dentro do mar e estava queimando as pessoas. Como é que esta coisa há de viver dentro desta água toda salgada?

Ainda bem que eu só botei meus pés dentro daquela água. Sei lá... De repente a água via e ia e eu nem sabia se ela voltava. Uma hora inté lembrei do meu véio. Quando ele bebia aquela aguardente de cana – era assim que o dono do alambique lá da fazenda chamava a pinga dele - meu véio ficava sonhando acordado. Dizia que queria conhecer o mar. Morreu sem ver esse trem tão perigoso e tão grande e eu ainda tô viva pra ver um bichinho que a gente não vê e que mesmo assim pode me matar.

E por conta desse tal de Coronacírus tô eu aqui sendo vigiada por meus filhos e até por minha neta Jéssica.

Mas eles podem ficar assossegados. Não quero morrer inda não. Quero ver meus netos crescerem e voarem com as asas que meus fios dão pra eles.

Mas uma coisa eu devo confessar só pra vocês aqui, peraí que caiu um cisco nos meus olhos...

- Havia era tempo que eu não sentia tanto amor dos meus filhos e da minha neta por mim.

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