segunda-feira, 23 de março de 2020

Dona Quarentena e o fogão a lenha de Dona Mariinha


(DELICADEZAS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS --  IV)


Esfrego minhas mãos observando a secura que vem se instalando nelas desde que iniciei minha tranquila quarentena. As lavações com água e sabão, raramente o álcool gel uma vez que não tenho saído de casa, as lavações de roupas e as várias limpezas da casa tem deixado a pele das mãos como uma fina camada de lixa. Não me importo. Nada como cremes e vaselina para deixa-las macias novamente. 

Entretanto tem sido faxinando esta minha casa e separando quinquilharias que uma lembrança de outros tempos me veio à memória, qual seja a cozinha da Dona Mariinha, minha mãe. 

Ela, a cozinha, era como um apêndice da copa que não servia para nada já que, além da janela, por ela entravam e saiam quatro portas. Entretanto minha mãe ainda conseguira instalar ali uma mesa oval, com seis cadeiras (ou quatro?). E, nos tempos do Natal, ainda conseguia um cantinho entre duas paredes para montar seu presépio, cheio de pequenos vasos de flores, casinhas de papelão e a manjedoura onde fiavam Maria, José e Jesus, além do burrinho, da vaca e dos carneirinhos. 

Mas a cozinha era, para mim, o pedaço mais belo da nossa casa. Acabei de medir o espaço ocupado por ela que, mais tarde, seria nosso banheiro. 

Calculando 1,5m de largura por 2,0m de comprimento, nossa cozinha tinha 3m². O fogão fora muito bem construído em alvenaria, sob a supervisão do meu pai, com o famoso xadrez vermelhão. Ele ocupava uma das paredes mais largas. Será que tinha forno acoplado nele? Não consegui lembrar. Provavelmente não uma vez que não caberia naquele minúsculo espaço. No restante da parede onde ele encostava, tinha uma prateleira de tábuas e, nela havia quatro ou cinco latas escurecidas pela fumaça. Arroz. Açúcar. Gordura de porco. Banha de côco. Pó de café. Talvez algumas quitandas. O feijão ficava numa enorme gamela (de madeira), destampado, num quartinho de muros e zinco construído no terreiro para ajudar a guardar o que não cabia dentro de casa. 

Na outra parede tinha a porta da copa e na outra tinha a porta para o quintal, descendo por uma larga escada até o tanque. Ali minha mãe lavava as roupas da casa em dias de sol. Não havia cobertura. Tudo ficava ao tempo. 

E a pia? Esta ficava na parede restante entre as duas portas. Era tão pequena que deveria caber apenas os pratos. Penso que minha mãe deveria lavar as panelas de pedra, ferro e barro no tanque, pois, além de não cabê-las na pia, tinha o pó escuro do carvão grudado nelas. 

A lenha era comprada e entrega por carroças. Uma vez meu pai pediu a mim e à minha irmã que fôssemos encomendá-la a um vendedor que morava do outro lado da cidade. Atravessamos uma longa trilha no meio dos morros e dos matos. 

Não havia geladeira. Havia sim um caldeirão de ferro onde minha mãe fazia nosso angu dizendo que não teríamos anemia, pois partículas de ferro se misturariam nele. Nosso angu era do fubá de moinho d’água trazido da roça. Meus tios, que continuavam morando na cidadezinha de onde viemos, sempre traziam fubá, feijão novo, ovos e frutas da época que tinham em seus quintais ou sítios. Quando eles chegavam era uma grande festa. 

Nas noites de frio e, por aqui ainda faz muito frio, era em torno daquele fogão que juntávamos para aquecer. Seis filhos, mais um ainda no colo, acocorávamos para ouvir minha mãe e meu pai contar história e eles nos contavam muitas histórias. 

Agora, enquanto escrevo, estou nesta mesma casa, já numa ampla cozinha, cheia de armários, com uma enorme mesa de madeira, geladeira, uma adequada pia, fogão a gás, duas janelas, muitas quinquilharias e uma saudade gostosa daquela cozinha que nem tamanho tinha. 

Junto à lembrança da cozinha da Dona Mariinha estou cá matutando se seria preciso haver uma molécula de DNA (ou RNA?) para nos apontar onde está nossa felicidade, nossa alegria, nossos prazeres, nossas vidas? 

Seria necessário um vírus em forma de coroa, invisível, intruso e letal a nos impor tal dona Quarentena e a virar nossas vidas de ponta cabeça? 

Certamente que não. 

Mas e esta dona Quarentena? 

Ela nos obriga a ficar em casa. E nos obriga a olhar o acúmulo de coisas desnecessárias jogadas nos fundos das gavetas, nos armários e por toda a casa. 

Esta Dona Quarentena nos expondo ao ridículo frente às todos estes objetos que o mercado nos enfiou goela abaixo. Este mercado voraz que nos faz trocar de celular a cada seis meses. Que nos deixa endividados com as novas maquiagens. Este mercado sedutor que nos impõe roupas a preço de ouro. 

Lojas de quinquilharias contrabandeadas do Paraguai, ou trazidas da China. 

Estaríamos nos transformando também em quinquilharias? 

Penso que nossos valores éticos e morais jamais estarão nos objetos que podemos comprar, nas cozinhas que podemos construir e planejar. Nos fogões ultramodernos que as lojas nos oferecem por doze vezes sem juros, obviamente já embutidos nas longas prestações. 

Mas, acredito sim que nossas vidas estão ancoradas nos encontros, nas contingências, nos caminhos, ou acocoradas em cantos de fogões, ou nas beiras das estradas, ou nos olhares de quem olha para além dos olhos. 

E o fogão a lenha da Dona Mariinha existiu também para que eu pudesse estar aqui a escrever a importância que ele me desvendou nestes tempos de Dona Quarentena. 

Quando este impertinente vírus se for, caminharei calmamente nas areias das praias, subirei as montanhas, dormirei numa rede ao relento, visitarei meus familiares nas terras de onde vim, irei novamente a Itália (agora tão sofrida), escutarei violeiros, cantarei minhas modas e terei olhos para me ver sendo olhada.



Conselheiro Lafaiete, 23/03/2020


Observação: peço permissão à minha irmã para postar seu comentário neste conto.

"Muito bom! Só uma observação: a estrutura de ferro da prateleira da cozinha está na minha casa, guardada com muito carinho! E a trempe do fogão era grossa por onde circulava água, tínhamos água quente(fervendo) no tanque e no chuveiro! Eta tempo "bão"!" (Maria das Graças Nogueira Rivelli Teixeira)

Um comentário:

  1. Essa Dona Quarentena tem-nos desvelado e, como um espelho, nos mostrado a nós mesmos. Que a gente aprenda se pode viver sem novelas, sem futebol, sem craques e estrelas, mas não sem o médico, sem o entregador de moto, sem o lixeiro, sem tanta gente que, anonimamente, nos mantêm vivos.

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